Da personalidade à individualidade



Que aventura é esta, na qual nos encontramos,
no meio da sociedade e da vida?
Esta é a aventura da existência: este é o desafio
de encontrarmos em nós próprios algo mais do que
uma personalidade, moldada e adaptada ao quotidiano
e aos outros, moldada e adaptada às regras que
obedecem às vozes que pululam à nossa volta. E esse
algo mais é a nossa individualidade una, pessoal,
irrepetível.
Muitas vezes, o mal estar que advém em nós sucede
do despertar desta individuação, em que ao mesmo
tempo que não nos reconhecemos já na imitação do comportamento
do colectivo, ainda não adquirimos uma acção própria
e individualizada. Este período de transição pode ser longo;
trata-se de um despertar cheio de avanços e de recuos, em
que as dúvidas e as incertezas estão presentes.
Sempre é mais cómodo, e aparentemente mais seguro,
sacrificarmos o caminho da nossa verdade se ele nos afasta
do caminho trilhado por todos os outros. Na verdade, somos
e estamos condicionados, desde que nascemos, e isso
impede-nos de ver e observar para além do enquadramento
mental do colectivo.
Mas, a verdade, é que cada um de nós é um ser, é um indivíduo.
E, enquanto indivíduo, projecta-se a partir de nós uma
autenticidade própria e única à qual precisamos de dar forma.
Qualquer sociedade, para conforto e tranquilidade, quer-nos
cópias repetidas, previsíveis e programadas. Estas cópias idênticas
não põem em causa estruturas, instituições, normas. Estas
cópias idênticas adaptam-se porque foram programadas para
se adaptarem. Não questionam nem tão pouco se interrogam.
Aceitam. Justamente, ao contrário, quando alcança a individualidade,
o ser adquire uma consciência nova e mais profunda,
que lhe permite prosseguir sem condicionamentos.

E, então, o que o orienta é a sua verdade interna.

A lógica e a imaginação



A dualidade que existe no universo, existe,
de igual modo, dentro de nós próprios. Está presente, na nossa
mente, uma polaridade evidente entre o raciocínio exacto e a
lógica e a vertente da intuição e da imaginação subtis.
Não raro, uma tende a predominar sobre a outra.
E, num mundo físico e material por excelência, é natural
que se privilegie o factual e o demonstrável. É até bom
que assim seja, sem ordem e normatividade, as sociedades
não sobreviveriam e o homem, como um todo, entraria
em desagregação. Porém, uma existência, individual, social,
política, ou outra, não se desenvolve se as qualidades
emergentes de uma mente viva e imaginativa forem ignoradas.
Os desequilíbrios tão acentuados que, hoje em dia, observamos
decorrem desta desarmonia interna.
Sempre que estamos perante dois pólos, tem de haver dinâmica, movimento
e interacção entre eles; caso contrário, a estagnação de um
provoca o adoecimento do todo. Matar a imaginação ou matar
a lógica representa um perigo absoluto para o homem.
Eliminar uma destas dimensões da mente representa o
desagregamento do ser. Hoje, não raro, sem espaço para o domínio da
mente imaginativa, o homem adulto fica aprisionado e
emparedado numa dimensão da existência que necessariamente
o desumaniza e lhe provoca dor e sofrimento. Reduzido ao
terreno das equações e da ciência e técnica, não resta ao
homem senão acreditar no prolongamento da vida e na
eliminação da morte, negando o que, tal como no universo,
existe dentro de si próprio.
Quando em equilíbrio, o ser humano adulto tem consciência da
da sua mente dual e não despreza aquilo que em si
o liga ao universo mágico da criança. E, justamente,
dessa magia, desse fantástico, está o mundo carente, pois
necessita de idealizar, transformar-se, recriar-se. Uma
realidade sem utopia é sinónima de um universo
que se esqueceu de que no sonho
está contida a forma de todas as coisas. Sendo que
o contrário também é verdadeiro.




Aldeia global



Podem-se procurar mil e uma filosofias;
pode-se ir ao encontro de múltiplas religiões,
sabedorias, conhecimento, ensinamentos; pode-se
estudar e aprender conceitos e técnicas e modalidades
de vida… mas, sempre faltará ao homem alguma coisa,
se, não buscando, não for ao fundo de si mesmo.
Este é o grande desafio que se vive hoje, num momento
de existência tão complexo: um momento de existência
de fim de ciclo. Nunca o saber e o conhecimento
estiveram numa escala tão elevada ao dispor do ser humano,
contudo, não assistimos no dia-a-dia, à construção de uma
sociedade mais justa, mais fraterna, mais livre. Paradoxalmente, até,
a realidade é, sob múltiplos pontos de vista, cada vez mais desigualitária e,
consequentemente, o homem tem menos liberdade, condicionado
por factores económicos, sociais e políticos, que conduzem à
exploração do outro por qualquer preço. A aldeia global em que
vivemos não é fraterna nem solidária.
Porque razão é que isto sucede? Sucede, porque não basta o
conhecimento, a teoria e o saber. Sucede, porque é necessária
a transformação do homem – e essa é a revolução que ainda
não se concretizou.
O saber e o poder sem a consciência são, tal como observamos hoje,
extraordinariamente perigosos. Sem uma consciência amadurecida
pela análise pessoal e a introspecção não pode o homem
construir uma sociedade mais justa. Pode-se até gizar o plano
ideal de uma ideal sociedade perfeita – mas, não tendo o homem,
em larga medida, atingido um nível de amadurecimento
não é possível construir um mundo onde o equilíbrio e a justiça
sejam reais.
Por isso, nada é mais importante do que a maturação do ser humano.
A verdadeira escola é aquela que nos ensina a pensar e a inteligir
em nós mesmos o que no mundo está em desarmonia. Mudando-se
o homem – transformando-se verdadeiramente de uma forma radical –
a sua individualidade nova trará um acréscimo de equilíbrio para o mundo.
É o amadurecimento de cada um que pode revolucionar o presente
e o futuro. Os tempos pedem, exigem, uma alquimia a cada homem;
e esta alquimia não se encontra, como lição, nos manuais – ela carece
de uma transformação de natureza interior, pessoal, única, e
intransmissível.



No movimento do mundo



Na existência, nada é dispensável.
O claro e o escuro fazem parte da essência da Vida
e, como tal, fazem parte de cada um de nós.
As nossas raízes estão na Terra, mas é para o alto
que as árvores crescem e é para o alto que o homem
deve também ascender. Pois, onde há equilíbrio, há a
movimentação de opostos.
Não existe, para o homem comum, uma plenitude
sem que o ser humano mergulhe na alegria e na dor,
no sofrimento e na satisfação; e inteligentemente, no
paroxismo destes opostos, o homem encontra o ponto de equilíbrio,
se souber entender que desta dinâmica nada deve ser rejeitado,
mas, sim, integrado. Iluminar a dor e a alegria é dar sentido
às coisas – e tudo o que tem sentido torna-se justo e equilibrado.
Por isso o homem deve caminhar na Terra, com os pés bem firmes,
e conscientemente desperto, ao mesmo tempo que tem
consciência que para além desta dimensão material, outras dimensões
estão presentes. Anular uma em detrimento da outra gera, naturalmente,
o desequilíbrio e não promove uma vida saudável e dinâmica.
E justamente, tudo no Universo apela ao dinamismo em nós
como forma de vivência plena e integral.
Quando o homem sente que lhe falta alguma coisa é porque não está
a caminhar em todas as direcções; é porque está preso numa
dimensão da existência, ignorando que na dinâmica da vida
a multiplicidade é a chave que abre a porta à harmonia.
O homem só alcança a liberdade, quando experimenta o aprisionamento;
só entende a alegria, quando conhece a tristeza;
só encontra o espírito, quando aceita o seu corpo físico, mortal.
Sem defender a justiça e a equanimidade na Terra, o
homem não pode esperar o paraíso no Céu.
Ignorar uma dimensão da Vida não pode gerar equilíbrio;
o despertar do homem tem de ser feito em todas as direcções, e,
sem nada rejeitar em si mesmo, nada rejeita, de igual modo,
no universo, pois que tudo faz parte da essência da Vida.
Assim, acordar para a tristeza e para a dor é despertar para a alegria

e para a plenitude.

Viver a solidão



Quando se sente a solidão,
como forma de incompletude, como
forma de ausência do outro, ou de outros,
como caminho doloroso da vida, é porque
algo falta ainda em nós. Na verdade, só estamos
sós, quando não sabemos estar acompanhados.
E esta verdade é válida até na solidão mais completa.
O estado de espírito que advém do estar sozinho
prende-se, em larga medida, com a atitude interior
que adoptamos. Podemos sentir a solidão como algo
doloroso ou, ao contrário, como algo pleno e
transbordante. Esta escolha tem ligação directa com
a existência ou ausência de Vida em nós próprios. E esta
Vida – se rica, borbulhante de energia, electrizante – projecta
um sentimento de integridade.
Hoje em dia, vivemos mergulhados num universo que, sem sentido
algum, nos submete à comunicação e contacto quase
permanentes; o tempo para nós mesmos é desprezado em favor
dos contactos telefónicos, das mensagens, das redes sociais –
e esta urgência, quase total, de estar em contacto, afasta-nos
de nós mesmos e leva-nos a encarar a solidão como algo negro e
tenebroso. Mas é justamente perante a vivência da solidão, ou de
momentos de solidão, que o homem se organiza e cresce; se o
diálogo e a ponte consigo próprio for verdadeira e não superficial e
fútil, como, em geral, é a grande maioria dos contactos sociais
que estabelecemos.
Na verdade, não há encontro com o outro, se antes não houver
um encontro profundíssimo com nós próprios. E todo o homem
consciente sente como verdadeira esta observação. Não é
possível estar em partilha, se eu, interiormente, estiver dividido;
se não tiver alcançado exprimir-me como o ser íntegro que sou.
Por isso, todo o ser humano verdadeiramente emancipado não
teme a solidão. Como tudo o que faz parte da Vida, aceita-a
e desfruta-a como dádiva para o seu crescimento e expressão
criativa. E percebe que sabiamente: há um tempo para semear
e um tempo para colher; um tempo para partilhar e um tempo
para construir.


Um homem na cidade

Todo o espaço natural é mais vibrante e são e o homem carece do contacto com amplos espaços abertos, onde possa respirar e fruir...